No Theatro Municipal João Caetano, realizou na última sexta-feira, 30 de junho de 1905, o Clube Dramático 27 de Julho a sua 2ª récita ordinária. O teatro estava repleto, o que sempre acontece, tratando-se dessa simpática associação.

Representou-se O Chifre do Diabo, opereta fantástica em 3 atos, 6 quadros e 1 apoteose, de Francisco Assis Pacheco e ornada com 36 números de musica de sua própria composição.

Foi regente da orquestra o conhecido maestro Nunes Junior, cuja compostura, reveladora de sua proficiência, desde logo patenteou à plateia que estava não somente seguro da missão que ia desempenhar como também confiante no êxito incontrastável e firme de sua tarefa.

Começa a desenrolar-se a peça e a Aurora aparece purpúrea, sob as cintilações do olhar de 'Satanás' que queimam-lhe o pensamento enquanto que as suas lágrimas orvalham-lhe o coração, no doce refrigério de um sincero amor. Coube esse papel à senhorita Maria Eugênia de Freitas Reys, que soube ser meiga e adorável ao mesmo tempo que indiferente e cruel. Ora, avergava-se aos caprichos de um diabo zombeteiro e mau, ora seguia automaticamente o caminho da virtude que uma fada amiga e devotada lhe traçava. E nesse labirinto de mil pensamentos revoltos e confusos, a Aurora encantadora, sabia rir, sabia chorar, sonhando algumas vezes na catalepsia misteriosa de um amor inexplicável.

E venceu, graças à dedicação da Fada Lynce, papel muito expressivamente interpretado pela Albertina Santos que estava segura de tudo quanto fazia, tudo dizendo com uma voz quase impecável e com reflexos vivos e abrasadores no olhar.

Satanás, mas um Satanás engraçado, batido em muitos combates, a ponto de haver perdido um chifre, não podia encontrar quem melhor o interpretasse do que mesmo o Irênio Coelho, que não é um amador e sim um ator que traz a plateia presa, e que transformara o seu papel em copo d'água com açúcar em que o espírito do público refrescava os lábios, esquecido de que tinha diante de si o diabo, circunstância, no entanto, que ele não ocultava e o que, de quando em quando, relembrava.

E foi exatamente quando o diabo aparecera, disfarçado em tabelião, acompanhado de dois outros servos, Azevedo Gomes e Freitas Reys, que os espectadores começaram a sentir. E tanto que, daí em diante, as sensações sucediam-se e se multiplicavam.

O trio dos tabeliães esteve admirável; cada um dos diabos soube dar graça e vida ao papel, patenteando a mais difícil naturalidade na movimentação desconcertada da embriaguez. Em muito foram auxiliados os diabólicos tabeliães com o respectivo número de música que incontestavelmente arrebatou. Por isso que foram muito justas, muito merecidas as palmas e as explosões de entusiasmo da plateia.

A baronesa de Vai ou Racha, excepção feita de uma entrada, portou-se admiravelmente, e tanto que não se pode desejar melhor em uma caricata, nesse gênero. Soube irritar, irritando-se. Os espectadores a fitavam, mas sem que pudesse ocultar a expressão de inquietude a que os arrastavam os gestos violentos, bem estudados da nevrótica baronesa. Se não foi constantemente interrompida por salvas de palmas, encontra isso explicação na natureza do papel, algum tanto antipático. Revelou, pois, Aída Camillo, real talento, tanto mais quanto é gentil e meiga, o que contrasta com esse dificílimo papel.

Apresenta-se-nos agora o vulto apaixonado de Cyrano, cuja alma, franzida de dor, causada pela fuga de sua doce amada, inspira compaixão, e faz ter-se pena realmente desse ente torturado pelas artimanhas de Satanás. Foi muito bem nesse papel o Costa Velho, porém velho amador que soube mostrar-se apaixonado com impecável naturalidade.

Mas.... Costa Velho tem alma e tem coração; que custaria ele, que tem memória e tem talento, reportar- se à sua mocidade, quem sabe? Aquecida, como a de todos, aos suavíssimos ardores do amor? Quanta ternura em sua canção! E como esplendido fora esse trecho de música que a todos encantou !.... Enfim, Costa Velho foi, como sempre de uma correção extrema.

Ismael Maia soube portar-se a seu lado como Tico-tico, e bastará dizer-se isso para que realcemos o mérito devido a esse amador que, dia a dia, vai conquistando novos triunfos. Para estar ao lado de Costa Velho e sobressair, é preciso mesmo um talento como o de Ismael Maia.

No vestíbulo do inferno, quadro que fora um dos melhores, Julião e Marciano, Azevedo Gomes e Tertuliano de Vasconcellos, conquistaram os mais fervorosos aplausos da plateia pela requintada graça no dizerem o difícil papel de ébrios, depois de terem saído, ao convite de Satanás, para molhar a goela. Azevedo Gomes, com as formigas, provocou bem gostosas gargalhadas, e foi bem secundado por Tertuliano de Vasconcellos.

Propositalmente, vamos falar em último lugar do trio dos assovios, calorosamente aplaudido e tão harmoniosamente executado que, quando foi bisado, tivemos receio de que não imprimissem a essa cena, extraordinariamente difícil, a mesma correção. Foi um sucesso, e os mais justos e ardorosos aplausos não foram regateados pela plateia, e nem o serão por nós, aos corretíssimos e simpáticos amadores Azevedo Gomes, Francisco Valente e Cardoso Pires.

Os coros nada deixaram a desejar, e, em suma, foi esplêndido o espetáculo do laureado e glorioso Clube Dramático 27 de Julho.

A distribuição foi a seguinte: Fada Lynce, senhorita Albertina Santos; Baronesa de Vai ou Racha, senhorita Aída Camillo; Aurora, senhorita Maria Eugênia de Freitas Reys; Cyrano, sr. Costa Velho; Diabo, Irênio Coelho; Ambrósio, Cardoso Pires; Mariano, Tertuliano de Vasconcellos; Tico-Tico, Ismael Maia; Julião, 1º assobio, 2º tabelião, Azevedo Gomes; 3º tabelião, A. Freitas Reys; 2º assobio, Francisco Valente; 1º diabo, Guilherme de Carvalho; 2º diabo, Américo Rabello; 3º assobio, Álvaro de Carvalho.

Os coros foram cantados pelas senhoritas Maria Beatriz d'Oliveira, Maria José Calvet, Alzira Sepúlveda, Hilda de Carvalho, A. Damasceno, Celina Santos, Alzira Rocha, Anna da Fonseca, Orminda Tavares, Marieta de Almeida e Eugênia de Siqueira e os distintos amadores Sebastião Calvet, José de Oliveira, Luiz Berger, Gastão Damasceno, Augusto Serrão, Álvaro Coutinho, Mathias de Carvalho, Pery Coelho, Carlos Madeira, Tancredo Cruz e Asdrubal Maya.

Tamanho foi o sucesso da apresentação, que o espetáculo subirá novamente ao palco do Theatro Municipal João Caetano no feriado de 14 de julho. Com certeza, novamente com esplêndida assistência.


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Publicado em 03/06/2025

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