Escola Nacional de Bellas-Artes, por Antonio Parreiras
Não viria à imprensa, se se tratasse de um ato particular de minha vida. Infelizmente, fui atacado em minha reputação de artista; e em tal caso não devo nem posso calar-me. Calmo, sem o menor rancor, historiarei os fatos que precederam a minha demissão. É desde já declaro que não tenho a menor intenção de ofender a quem quer que seja.
Pode ser mal interpretada a minha demissão, tendo sido proposta por um artista, hoje com investidura de chefe na Escola Nacional e por esta mesma razão, pode calar de uma maneira cruel para mim, no espírito público e prejudicar a minha reputação, reputação esta adquirida à custa de enormes sacrifícios, que nunca foram minorados pelo governo, pois que jamais fui pensionista do Estado, e nem mesmo utilizei-me do ensino acadêmico se não pelo espaço de um mês e dias, completando os meus estudos na Europa exclusivamente a expensas minhas.
Ora, parece-me que, nunca tendo sido pesado aos cofres públicos, tenho o direito de ser respeitado naquilo que consegui com meus parcos recursos, embora mesmo que minhas humildes produções em nada houvessem concorrido para engrandecimento da arte nacional.
E é bastante doloroso ter recebido em terra estrangeira um acolhimento honroso, vendo meu nome citado pela imprensa italiana, a qual por mais de uma vez declarou-se favorável aos meus trabalhos, a ponto de dedicar-me um artigo intitulado Um estrangeiro que honra a Italia (Adriatico de 15 de Novembro de 1889), e receber hoje do governo do meu país a minha demissão, e, ainda mais, ter sido ela proposta por um artista que se declarava o símbolo da paz e fraternidade!!
Mas não admira, uma vez que o mesmo artista concorreu para que o eminente pintor Victor Meirelles de Lima, seu mestre e seu amigo, se visse coacto a pedir demissão. Para que eu fosse demitido, só é racional um destes dois motivos: falta de habilitações ou não cumprimento de deveres.
Quanto ao primeiro caso, não! pois está provado que as tenho como patente, como ficou comprovado na última exposição; não obstante, porém, se o governo disso ainda duvidasse, seria mais racional que mandasse pôr em concurso a cadeira de que fui demitido, ou tratasse de inquirir e obter provas incontestáveis acerca do resultado do meu trabalho como professor; então teria tido ocasião de praticar um ato de justiça reconhecendo que dignamente ela era ocupada.
Está portanto por baixo a primeira hipótese.
Vejamos agora a segunda, isto é, o não cumprimento de deveres: Se fácil foi destruir a primeira, facílimo será destruir a segunda.
Nem uma falta se encontra em minha caderneta. Dei sempre duas aulas ao dia, sendo uma de manhã em São Diogo e outra em Icaraí à tarde, quando só tinha obrigação de lecionar três vezes por semana, quando entendesse necessário. Além de tudo, fiz uma viagem a Teresópolis, com os alunos, a qual durou um mês, gastando somente o governo 325$000 e não dispendendo um real com a minha pessoa.
Fica assim destruída a segunda hipótese.
Qual, pois, o motivo da minha demissão?
"Querer o novo diretor que ocupasse uma cadeira da Escola Nacional seu irmão Henrique Bernadelli; com o que eu estaria de perfeito acordo se com tal ato ele não viesse ferir direitos por mim adquiridos, visto que eu já era professor da Academia e durante a minha regência na aula de paisagem dera provas de capacidade profissional."
De nada podia valer a minha reputação de artista, de nada podiam valer todos aqueles estudos pendurados na parede da sala onde funcionou a aula, de nada, repito, podia valer o rigoroso comprimento de meus deveres, nem minhas aptidões diante do interesse pessoal do sr. Rodolpho Bernardelli. E tanto eu tinha esta certeza, que fui consultar o secretário do ministro de Instrução, Dr. Lauro Sodré, o qual me declarou que não havia motivos para esperar a minha demissão, visto que minhas habilitações e reputação antepunham-se a semelhante ato.
Fiei-me, por isso, na palavra do dr. Lauro Sodré, e todavia não fui, como era de esperar, contemplado na lista dos novos professores, sendo conseguintemente exonerado.
Não posso, por mais que esmerilhe, encontrar um motivo que justifique um tal proceder, máxime em uma pessoa da estatura do dr. Lauro Sodré, ocupando um lugar tão importante como seja o de secretário de ministro de Instrução, e como tal propondo e conseguindo a demissão coletiva do corpo docente da Academia, e a nomeação do atual diretor, quando é sabido que este não era o representante imediato da confiança do ministro, visto ter sido chamado em primeiro lugar o eminente e insigne artista Décio Villares para ocupar a diretoria da nova Escola Nacional, como este mesmo declarou pela Gazeta de Notícias.
Não me seria tão dolorosa a exclusão de meu nome, se para isto fosse alegado uma razão aceitável pelo bom senso e pela lógica.
Infelizmente, porém, é isto absolutamente impossível como acima já demonstrei; sendo prova evidente a nomeação do sr. Henrique Bernardelli para a segunda cadeira de pintura, que é a de paisagem; pois não se pode admitir que o atual diretor suprimisse esta aula num país como o nosso, dotado de tantas belezas.
E depois aí está o curso especial de paisagem em uma das primeiras escolas da Alemanha; o mesmo se não houvesse desses exemplos a frequência que sempre teve a referida aula devia servir de barreira a este atentado contra o bom gosto.
Se havia necessidade da supressão de uma cadeira, devia escolher-se aquela de menor frequência, como, por exemplo, a que é destinada pela reforma ao sr. Rodolpho Bernardelli, que nunca teve mais de 2 alunos!!!
Não entendeu, porém assim o novo diretor e acabou com a aula especial de paisagem, não atendendo a que os alunos dessa aula, dedicavam-se exclusivamente ao estudo desta especialidade levados pela natural vocação, e obrigando-os assim a estudar pintura histórica, fazendo do seu principal ideal um estudo secundário!!
É isto a negação completa da liberdade na arte, coisa, aliás, que sempre apregoou o sr. Rodolpho Bernardelli, pois assim obriga os alunos que se destinavam ao estudo de paisagem a frequentar uma aula de disciplina diversa, não trepidando em criar uma aula inútil, como seja a de mitologia!
Deste modo teremos menos paisagistas, mas em compensação muitos conhecedores de mitologia, hoje elevada à alta categoria de uma ciência difícil.
E chama-se a isso reformar uma Academia!
Mas para que insistir neste ponto se o único móvel da minha exclusão já foi por mim e é por todo o mundo tão claramente explicado?
Creio que consegui passar para o domínio público a verdade real dos fatos. Nada mais me resta fazer senão agradecer ao sr. Rodolpho Bernardelli o modo cortês, ou usado nas cortes, como procedeu para comigo, destituindo-me, a fim de colocar desinteressadamente seu irmão na cadeira que este tanto cobiçava.
Quanto ao mais, desejo que a sua administração seja tão afortunada que o possa elevar para muito além da justa censura de seus mestres e da reprovação natural dos seus colegas, de modo que não seja empanada a glória do seu nome de artista. No que me diz respeito, limitar-me-ei a trabalhar, longe de toda camarilha.
Antonio Parreiras
Capital Federal, 26 de janeiro de 1891
"Meu caro Antonio Parreiras. Aplaudo com o mais vivo entusiasmo a brilhante atitude que tens tomado em defesa dos nossos direitos de paisagistas. Uma vez que o sr. Rodolpho Bernardelli, atual diretor da nossa Escola de Belas Artes, teimou em destruir a aula de paisagem nessa escola, e, como a minha consciência me acusa de ter sido eu um dos causadores desse desastre, porque concorri com o meu contingente para os triunfos alcançados pelo sr. Bernardelli na luta contra a velha congregação da Academia, cumpro o dever de declarar ao colega que ter-me-á ao seu lado para conjuntamente protestarmos contra esse ato destruidor, que o sr. Bernardelli acaba de praticar, desprestigiando assim tão cinicamente a profissão de um punhado de moços, que, há muitos anos e com bastantes sacrifícios, se dedicam a essa especialidade no Brasil. Podes pois adicionar aos teus protestos, mais os deste que tem a honra de se subscrever. Colega e amigo.