Há como que um prurido de tudo destruir, um desejo de sufocar, ainda no berço, a Arte Nacional. Tudo cai, tudo desmorona em redor do templo augusto. Se ainda de pé estão suas colunas é porque foram assentos em fortes alicerces, e o seu granito é rijo, é que a sua argamassa foi preparada pelos nossos valentes mestres - Victor Meirelles e Pedro Américo.
No Congresso, nesse congresso de moços, de republicanos, lavra-se a sentença de morte da arte brasileira, negando-se ao ensino artístico as migalhas de uma subvenção; fazendo-se economias de verbas, já tão mesquinhas que temos vergonha de declará-las.
Que será deste país sem a arte? Qual o desenvolvimento que pode ter quando tiram-lhe as principais fontes de civilização?
Esperam torná-lo grande, respeitado só com a política? Esta, quando muito, poderá reduzi-lo no que já reduziu a Itália; a um país depauperado, que desce, e se aniquila, quando, ainda há bem pouco tempo, só pela sua arte, era colocado na mais alta esfera da civilização, e respeitado pelas nações mais cultas, iluminadas pelo facho ofuscante de sua arte pura e grande, de sua indústria soberba o artística, pelo desenvolvimento intelectual de seus filhos, que imigrando para as desertas regiões da América, transformavam os campos e os sertões, em cidades monumentais, onde o cunho da arte italiana deixara indeléveis traços de sua pujança e riqueza.
Destruir o ensino artístico no nosso país, é fechar o caminho à Nação, é encravar a locomotiva do progresso, é reduzir-nos às condições dos tempos coloniais.
A República não deve ser o coveiro da Arte Nacional, porque seria minar com a broca da ignorância o granito do seu pedestal, seria fazer-se odiar pelos republicanos de todos os tempos, que são os artistas, para quem só há uma diplomacia - o talento; só um culto - a Arte; só um Deus - a Pátria.
Não posso crer que no congresso do meu país, onde tão numerosas cabeças existem, não haja uma só que se levante enérgica e altiva, para protestar contra este projeto que vem destruir a Arte, que vem matar talvez a única coisa que tem resistido a todas as lutas.
E, depois, com que direito nega o governo da República o auxílio devido aos artistas, o seu quinhão indiscutível de proteção oficial?
Não somos nós brasileiros, não concorremos para o engrandecimento do país, não demos o nosso sangue a esta República, que hoje nos nega um punhado de ouro? Na luta, ainda há pouco travada, não encontraram porventura o cadáver de um pintor? Porventura alguns destes senhores deputados puderam ufanar-se de ter feito mais por esta terra do que a classe artística?
Quem mais alto elevou no estrangeiro o nome brasileiro do que Carlos Gomes, do que Victor Meirelles, do que Pedro Américo?
Não fosse Carlos Gomes, e o Brasil passaria ainda hoje por uma enorme fazenda de café; porque não será com tal política que se conseguirá tornar esta pobre terra respeitada e conhecida.
Francamente adverso à atual Escola de Belas Artes, hoje reduzida a uma inspetoria de immigração italiana e espanhola, não aceitando de modo algum o ensino artístico como está sendo feito, revolta-me, indigna-me, entretanto, esta supressão de verbas proposta pelo sr. general Glicério (1), que de alvião sacrílego atira-se sobre o templo da arte para destruí-la.
Destruam-na e ficarão esmagados sob as suas ruínas.
Arranquem os livros das mãos da mocidade, desta mocidade para quem apelam em momentos de perigo; quebremos pincéis e o cinzel do artista; reduzam as escolas superiores, as academias a colégios, e a República não resistirá. Sim, ela cairá!
Não se alimentam princípios republicanos com a ignorância, nem se encontram defensores para causas elevadas num meio de imbecis; não se consegue implantar em almas estéreis a imagem da República, que é a supremacia de tudo quanto há do sublime.
Destruam a Arte Nacional, e peçam depois aos estrangeiros que façam estátuas para nossos heróis, que pintem em apoteoses artísticas as páginas gloriosas da nossa história. Aos artistas brasileiros restará uma vingança, a de sintetizarem, em suas manifestações artísticas, este Congresso na figura de Nero.
Ah! Meu imorial músico! Ah! Meu grande brasileiro! Oh! Carlos Gomes! Que valor pode ter a apoteose que te fazem hoje neste país, onde um Congresso para fazer economias, quase manda fechar as portas de uma Escola de Belas Artes!
Quanta hipocrisia em todas estas manifestações de luto, em todos estes aparatosos cuidados governamentais, em todos estes votos de pesar lançados nas atas da Câmara, esta Câmara que nega uns miseráveis vinténs ao Instituto Nacional de Música, onde moços estudiosos procuram seguir-te os passos? Que reduz as verbas destinadas ao ensino artístico a tais proporções que nem para comprar votos eleitorais dão?
Mas, tudo isto é naturalíssimo; que outra coisa pôde fazer o autor do projeto se em sua alma esterilizada pela política, não há o sentimento estético, a influência da arte que caracteriza o progresso de um povo!
Aceitemos resignados o golpe que nos vibra: "ele não sabe o que faz".
Antonio Parreiras
Artigo publicado originalmente a 14 de outubro de 1896, no jornal 'O Fluminense'.
Nota (1). O deputado General Francisco Glicério foi o relator do orçamento federal para o ano de 1897. Em setembro de 1896, protocolou um projeto que em seu segundo artigo propunha a extinção de várias instituições de ensino, entre elas a Escola de Belas-Artes.
Art. 2.º Ficam extintas a Faculdade de Medicina e Farmácia, a Escola Politécnica da Capital Federal, o Ginásio Nacional, a Escola de Belas Artes, o Instituto Nacional de Música, o Museu da Capital e o Pedagogium.
§ 1º Os edifícios de propriedade da União, em que atualmente funcionam esses estabelecimentos, ou que estiverem por eles ocupados em virtude de algum contrato ou dependência anterior, bem como as bibliotecas, gabinetes, museus, coleções, arquivos, aparelhos, laboratórios, móveis e mais objetos do serviço deles, passarão a pertencer à sociedade civil de duração indefinida que, de conformidade com o decreto legislativo n. 173, de 10 de setembro de 1893 e as disposições da presente lei, se organizar para a criação, manutenção e custeio de uma Universidade no Distrito Federal.
Na peça orçamentária, o General Glicério autorizava o executivo a "reorganizar a Secretaria de Estado, a Repartição da Polícia, a Brigada Policial, a Escola de Belas Artes e o Instituto Benjamin Constant, reduzindo em cada serviço o pessoal respectivo e diminuindo a despesa no conjunto dessas consignações".
Levantaram-se contra a medida os Srs. Paula Guimarães, Coelho Lisboa e Medeiros de Albuquerque, que apresentaram emendas em oposição ao projeto original. Este último, em discurso, defendeu a EBA:
"As outras três emendas, que são entre si flagrantemente contraditórias, referem-se à Escola de Belas Artes. Diz que são contraditórias porque das quatro hipóteses, que se podiam dar sobre a organização do ensino das Belas Artes entre nós, a única que seria absolutamente carecedora de qualquer fundamento foi a que a comissão adotou.
A Comissão guarda para a União o ensino da Escola de Belas Artes, mas tira-lhe todos os recursos necessários para modelos, compra de quadros, prêmios de artistas, deixando de consignar verba para mudança de casa. Nestas condições, parece que só há uma coisa razoável a fazer: suprimi-la. Ou suprimi-la de vez, ou suprimi-la, passando para a municipalidade ou então ela deve ser convenientemente dotada. A solução dada pela comissão, é que não é absolutamente cabível mantê-la assim, é melhor não mantê-la.
Para avaliar-se em que condições se acha aquela Escola basta dizer que funciona em uma ala do Tesouro, e não tem uma só sala onde se possa, convenientemente, instalar aula de desenho. Aquela em que se acha esta aula é de tal natureza que os professores preferem que ela funcione de noite, à luz elétrica. Se isto se passasse na nevoenta Inglaterra, seria justificável, mas aqui, onde todos os dias se morre de insolação, este fato define bem claramente as condições daquela escola."
Pesquisa e edição: Alexandre Porto
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