No ano de 1887, com apenas 27 anos completados, o paisagista niteroiense Antonio Parreiras já traçava em seu destino o desejo de aperfeiçoar sua técnicas na Europa, com grandes mestres e quem sabe encontrar seu professor, o alemão
Georg Grimm, que no entanto faleceu, em Palermo, na Itália, em dezembro daquele mesmo ano.
E era tão justo esse desejo que muitos amantes das artes realizavam campanhas para que os abastados da Corte adquirissem obras de sua já vasta produção. Para além de seu talento ainda em desenvolvimento, Parreiras era reconhecido como um incansável trabalhador da arte pictórica.
Jornais chegaram a implorar para que o governo imperial, por meio da Academia Imperial de Bellas Artes, a mesma que Parreiras havia abandonado poucos anos antes, adquirisse alguns de seus quadros.
"A nossa Academia de Bellas Artes, por exemplo, bem podia, prestando assim o seu generoso concurso ao distinto artista, enriquecer a sua Pinacoteca com um dos melhores quadros do Sr. Parreiras" (Gazeta de Notícias, 15/07/1887).
"'A Tarde' é um quadro nas condições deste de que nos ocupamos não pode ser adquirido por qualquer particular. Necessariamente, ao pintá-lo, o artista abriga a esperança de que ele seja comprado pelo governo ou por qualquer associação poderosa. É atualmente ministro do império um homem que estima as artes e que nos primeiros dias do seu governo manifestou sinceros desejos de melhorar e favorecer as condições da academia. Creio que o ministro não encontrará melhor ocasião que esta para manifestar o seu zelo artístico enriquecendo a academia com este quadro, de um de seus discípulos, e que irá figurar entre os melhores que ela possui. Esta é que é a animação de que precisa a pintura nacional para levantar-se e para progredir. A compensação dos sacrifícios é o verdadeiro prêmio que dá todas as coragens e faz atletas de pigmeus" (Diário ilustrado, 26/08/1887).
E não foram em vão os recorrentes pedidos de ajuda. Em outubro daquele mesmo ano, o governo imperial acabou por autorizar, ao diretor da Academia,
Antônio Nicolau Tolentino, a aquisição, por três contos de réis, do quadro "A tarde", tendo a AIBA recebido também, a tela "Efeitos de tempestade".
A primeira, uma deliciosa paisagem vespertina de Piratininga, foi vista em agosto na Glace Elegante, situada à rua do Ouvidor. A segunda, mostrando a cidade do Rio do Janeiro, vista ao longe da praia niteroiense do Gragoatá, esteve exposta, em junho no Grêmio de Letras e Artes, na então rua do Hospício, hoje Buenos Aires. Sobre essa aquisição, escreveu Parreiras ao diretor Tolentino:
"Com o fim de tornar mais aceitável pela Academia das Bellas Artes a compra do quadro 'A Tarde', pelo preço que pedi, quantia única com que conto para ir estudar na Europa, venho tornar conhecida de V.Exc. a intenção que tenho de oferecer à mesma Academia meu quadro 'Efeitos de tempestade', que de novo me pertence por oferta que me fez o senhor Antônio Pinto Moreira, a quem coube no sorteio que efetivei. Certo da bondade de V.Exc. conto que dispensará a sua justiça a quem se confessa" (Arquivo do Museu D. João VI/UFRJ).
No ano seguinte, o destino europeu de Antônio Parreiras é italiano, em Veneza, tendo aulas com Filippo de Carcano (1840-1914). Sua volta ao Brasil se dá em 1890. O pintor, portanto, não estava no Brasil quando a escravidão foi abolida (13/05/1888) e quando a República foi proclamada (15/11/1889).
Os quadros
Em
Efeitos de Tempestade nota-se certa monotonia de tons, porque o artista, tendo que preencher quase toda a tela com o céu e o mar, naturalmente foi obrigado a fazer com que aquele se refletisse neste; mas um demorado exame destaca perfeitamente nuvens e águas, descobrindo nestas últimas muita variedade de sombras, arranjadas com esforço realmente artístico.
O barco arruinado, a família do pescador, espalhada melancolicamente na praia, e o mais que o pintor julgou que constituísse o seu assunto, "Efeitos de Tempestade", não passam de graciosos acessórios. Neste quadro, o que mais encanta é a formosíssima Cidade de São Sebastião, que se ostenta ao longe, reclinada aos pés das suas belas montanhas azuis.
Uma mancha branca, destacando-se sutil, é a cúpula da Candelária; lá está também a torre esguia da matriz do Largo do Machado. Observado entre as névoas da distância, poderia se dizer que a bela capital do império, já era cercada de monumentos e fortes, de mármores e mosaicos.
Segundo uma crônica de época no jornal Diário Ilustrado, assinada por M.R., o quadro
A Tarde não é tão espetaculoso como o primeiro, mas é talvez mais belo. Representa um atalho, que vai ter a um povoado, cujas casinhas aparecem ao longe. Ao lado da estrada murmura um regato.
Acusavam Parreiras de falta de colorido e ele mostrou que sabe também jogar com as cores, e as mais perigosas, livremente, com harmonia e segurança.
A paisagem é isto: ao fundo, o céu quente de uma tarde tropical, com todo o colorido admirável com que o sol sabe ornar a sua câmara de veludo. Parece que há fogo para aquelas bandas. A luz alastra-se pelo céu e muitas vezes lá fica desdobrada, como um lençol de sangue, pela noite adentro. Vindo a frente encontra-se uma igreja branca e um grupamento de casas à beira da estrada. Sente-se naquela aldeola rústica a bondade flamenga dos quadros de Vander-Heyden e de Teniero. A entrada é clara e a par dela debruçam-se árvores silenciosas que tomam um tom forte a hora do crepúsculo.
Vem descendo sinuosa, atravessa uma ponte de pedra sob a qual escoam-se em silêncio as águas mansas de uma lagoa. De um lado a água parada, que ele pinta admiravelmente, com uma transparência de cristal, reflete umas roupas lavadas e estendidas ao vento ao redor de um casebre. De outro lado é o arvoredo verde-negro que se mira no espelho sombrio.
Passando a ponte de pedra vê-se à direita de quem observa o quadro um rapaz ainda novo que desarma uma gaiola. São horas de recolher. Pela estrada, na direção da aldeia, com a enxada ao ombro, volta um trabalhador do campo. De um lado e outro da estrada há uma bela vegetação rasteira, entre semeada de flores campestres
Umas longas árvores esguias, secas, onde se balança o musgo, despidas de folhas, levantam para o céu os grandes braços nus. Do canto esquerdo no alto da tela desce uma claridade amarela de sol que entra tumultuosamente através da ramaria e vem esbater-se no chão da estrada, iluminando o flanco do menino e a frente do trabalhador que avança.
Há em todo o quadro muita harmonia no colorido, muita pureza de tintas, cuidadoso esmero no desenho. Tem dificuldades de que o autor saiu-se perfeitamente e uma delas é aquele fundo quente que foge muito bem, sem o emprego de tintas neutras. É boa a perspectiva. A harmonia dos tons é o que mais prende, associada a nota da poesia rústica que vibra sonoramente em toda a paisagem. O quadro é bem acabado e nessa parte como em todo ele o autor afastou-se dos seus quadros anteriores.
Notas:
La Glace Elegante era uma loja de molduras, situada à rua do Ouvidor, 138, que assim como outros estabelecimentos, em meio a seus produtos, abria espaço para exposições de obras de arte ou novidades do mundo artístico-industrial.
O
Grêmio de Letras e Artes era localizado na então Rua do Hospício, hoje Buenos Aires, no Centro do Rio de Janeiro.
Em 1887, o primeiro-ministro do Brasil era João Maurício Wanderley, o
Barão de Cotegipe (1815-89), que de fato, no caso citado, atuou em benefício de Parreiras.
Pesquisa e edição: Alexandre Porto
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