A 21 de janeiro de 1895, Antônio Parreiras completava 35 anos. Após uma temporada de estudos de dois anos na Europa e já com algum sucesso comercial de seu trabalho, o pintor decidiu construir uma casa/atelier na rua José Bonifácio, no trecho hoje denominado rua Tiradentes.

Parreiras morava até então de aluguel num palacete da rua Presidente Domiciano, que hoje conhecemos como Solar do Jambeiro, um centro cultural no bairro de São Domingos.

Como paisagista, Parreiras já tinha a consagração do seu nome nos quadros que produzia, inspirado na natureza pujante de nossas terras. Foi à Itália; já era um artista, antes mesmo de partir para o "país das artes", mas lá estudou com grandes sacrifícios.

De volta ao Brasil, foi nomeado professor da Academia de Bellas Artes; intrigas de oficiais do mesmo ofício, atritos de gabinete, a que o Parreiras jamais se habituou, a mania de obrigar o estudo de paisagem entre quatro paredes, tudo isso excitou o temperamento irrequieto do artista, que abandonou a Academia para criar a Escola ao Ar Livre. Foi um sucesso! As exposições coletivas, um acontecimento notável.

A partir de 1893, Parreiras conquistou o público e os endinheirados do emergente Estado de São Paulo. Foram várias exposições na capital, em Campinas e Santos que lhe renderam muitas vendas e encomendas para pintar fazendas do já consolidado setor agrícola paulista. Foi com esse capital, principalmente, que o pintor pôde realizar seu projeto de uma casa/atelier em sua cidade natal.

Num domingo, 11 de agosto de 1895, Parreiras franqueou pela primeira vez ao público o seu belo e novo atelier, numa exposição que iniciou às 10 horas da manhã e só terminou às 21h.

E como se tratava de uma exposição preparatória àquela que ele inauguraria em São Paulo, no salão da Pauliceia, o evento tornou-se uma oportunidade única de admirar os belíssimos trabalhos, inclusive coleções de estampas, livros, etc.

Dupla impressão teve o público que aceitou o honroso convite: apreciar os belos trabalhos do laureado pintor e ver que ao atelier concorreram cerca de 450 pessoas. Além de representantes da imprensa desta e da vizinha capital, encontraram artistas de mérito e entre eles o grande Victor Meirelles, cujo maior elogio era o consenso unânime que cercava o seu mérito.

Antonio Parreiras era um artista infatigável; a prova dessa asserção está na grande coleção de quadros, está no belo palacete, de sua propriedade, construído exclusivamente com o produto do seu trabalho de sua arte e da qual já era um dos mais dignos cultores.

O Atelier

O prédio onde construiu seu atelier, e que é a sua casa de vivenda, é, ainda hoje, um dos mais lindos e artísticos edifícios de Niterói; foi construído sob a direção de Miranda Horta, seguindo a planta do arquiteto Ramos de Azevedo, e entre as obras de arte que o ornamentam, notam-se esculturas e baixos-relevos do artista italiano A. D'Amore. O estilo é eclético, sendo o portão bizantino.

O atelier, amplo e alegre, com 12 por 6m, é iluminado por uma larga claraboia de cinco metros quadrados. Naquele domingo, com visitas tão ilustres, suas paredes se encontravam literalmente cobertas de quadros, em número talvez superior a trezentos, notando-se trabalhos originais de quase todos os nossos bons artistas nacionais e de muitos artistas estrangeiros de nome, com dedicatórias que sobremaneira honraram o distinto paisagista niteroiense. Boa parte dessas obras são parte, hoje, do acervo do Museu criado na residência, em 1942.

A maior cópia desses trabalhos pertencia, porém, ao pincel do próprio Parreiras. Em exibição especial destacavam-se as seguintes telas, produções mais recentes do ilustre paisagista: os quadros denominados Atalaia, Rochas Vermelhas, Canto da Praia, Rua Aurea, Cidade ao longe, Rochedo da Boa Viagem, Mau Tempo, Recanto de Praia, Os Pombos, Cabana do Pai Simplício, Casa de Olga, Solidão, As cabanas, No campo, Neblina, Preamar, Vista da Cidade, Saudades, Oração, A lanterna, Restinga, A chuva, Gaivotas, Efeitos do sol, Pescador e mais 16 estudos.

Dos quadros acima citados, se tivéssemos de destacar alguns, seriam:

"Saudades", é o título de um magnífico estudo de rochedo da Boa Viagem, uma praia em uma encosta rochosa, com uma mulher reclinada nostalgicamente sobre um rochedo, a cabeça descansando sobre uma mão e o olhar perdido no espaço, tendo pouco abaixo a água do mar a quebrar-se mansamente na areia. Uma mulher perfeitamente em harmonia com o ambiente que a cerca. O quadro é imensamente sugestivo, embora haja um quê de aparentemente monótono no seu aspecto. Os rochedos estão tratados com grande ciência de observação dos cambiantes diferentes que tomam as pedras sobre a luz, e a água é pintada com muita firmeza. A dureza material do rochedo, o conjunto de elementos reunidos nesse quadro, impressionam agradavelmente pelo modo porque foram sentidos e interpretados.

O quadro "Oração" representa uma pequena colônia à beira-mar, onde o espírito religioso dos pescadores ergueu um desses cruzeiros tão comuns no interior. Há perto uma cabana e diversos botes no segundo plano: lá embaixo, o mar. Em torno do cruzeiro um grupo de pescadores faz oração. É simples, bem sentido e bem executado.

Neblina, pequeno quadrinho feito de uma só vez, executado com bastante felicidade, representa a nossa baía em momento de cerração. Vê-se no plano anterior umas pedras esverdeadas pelo limo e o mar com sua superfície completamente tranquila. Ao longe surge de uma massa de névoa compacta o pico do Pão de Açúcar, tudo isso feito com a maior simplicidade, porém por isso mesmo digno de menção especial.

"As Gaivotas" é um quadro alegre e com todas as finas qualidades de fatura do pintor. Uma grande pedra meio inclinada, sobre a qual pousa um bando dessas garças do oceano. Por um pequeno arco ao lado do rochedo vê-se o mar e o céu, o primeiro cheio de movimento, com inúmeras embarcações, o segundo azul, com algumas nuvens brancas bem metidas e manchas alvas microscópicas de gaivotas que voam.

No quadro "Natureza morta" notam-se uma abóbora morango e um tacho bem imitados, além de muitos outros como: Preamar, Volta da cidade (esboço), Cidade ao longe, Atalaia, Canto da praia, Rua Áurea, Mão tempo, No campo, Cabana, Rochas vermelhas, Casa de Olga, Cabana de pai Simplício, Chuva e efeito de sol, etc.

Como citado acima, poucas semanas depois, o artista levou esses quadros a São Paulo e Campinas, onde realizou exposições e onde contava grande número de apreciadores e clientes.

Sobre este domingo festivo, escreveu o professor de desenho da Escola Normal de Niterói, Francisco Carlos Pereira de Carvalho em "O Fluminense".

Fomos também visitar o atelier de Antonio Parreiras e lá encontramos a fina flor da sociedade niteroiense, lá vimos o que há de distinto nas artes, nas ciências e nas letras. Diante dessa manifestação espontânea quanto valiosa, pois que determina a justa consideração em que é tido o artista, diversas reflexões nos assaltaram o espírito.

É que os talentos de eleição, as entidades superiores, elevam-se de tal modo no conceito geral, como os astros de primeira grandeza, fazendo que se lhes note o esplendor pela luz mirífica e rutilante que de si desprendem.

É que o verdadeiro artista, criatura predestinada, embora a vida muitas vezes lhe seja precária e tormentosa, vai, à custa de privações e sacrifícios, levantando sem sentir o pedestal de sua glória, vai criando a auréola de seu nome que se engrandece, que se torna notável para ser repetido por um povo, por uma nação inteira, atravessando os horizontes da pátria para ser repetido em todo o mundo civilizado.

Quando trabalha, quando produz, sendo como é o artista o resultado do meio em que vive, em que se desenvolve, deixa impresso em sua obra não só o característico de sua individualidade, mas também o característico de uma geração, documento de inestimável valor pelo qual a posteridade julgará do grão de adiantamento moral e material dessa mesma geração.

Antonio Parreiras, laborioso como é, apaixonado por sua arte, sacerdote dessa religião sublime, compreende claramente a importância de sua missão civilizadora e cada dia mais se esforça para mostrar que erraram os que previdentemente lhe profetizavam um futuro auspicioso e brilhante.

O seu talento e a sua atividade, o seu amor e a sua paixão pelo belo, representado na natureza pujante e grandiosa desta terra estremecida, eram penhor seguro e indestrutível de que teríamos um artista que seria o nosso orgulho, a nossa honra porque sobre nós se refletiriam as fulgurações de seu nome engrandecido e respeitado.

Transpondo os umbrais do atelier de Antonio Parreiras recebe-se a mais satisfatória impressão e tudo concorre para fazer ressaltar a verdade das asserções e conceitos que acabamos de expandir.

A desordem aparente dos móveis, os vários objetos ornamentais e de estudo, a quantidade de telas, esboços e quadros terminados pendentes dos muros ou colocados em cavaletes indicam apurado gosto artístico e prendem a atenção do visitante arrebatando-o para uma região superior, ideal, onde a alma se expande, esquecendo-se das contingências da vida para ver melhor, livre, intangível como é, para gozar a suprema ventura, entregando-se às cogitações do belo e do sublime.

O exame calmo e demorado dos diversos trabalhos expostos, dos diversos trechos da natureza habilmente surpreendidos em seus múltiplos e variados aspectos, é motivo de prazer indefinível.

No fundo do atelier, uma cortina escondia cautelosa a grande tela destinada a perpetuar o episódio escolhido no imperecível poema de Fagundes Varella - Evangelho nas Selvas.

Disse-nos Antonio Parreiras que essa tela será uma prova de sua aplicação e estudo, prova mais séria, porém que tem lutado muito para vencer certas dificuldades que surgem a cada passo, perturbando a marcha do trabalho, esperando, porém, superá-las.

Compreendemos, meu bom artista e já sabíamos outro tanto dos grandes luminares da arte, compreendemos essa luta íntima quando o braço não executa a vontade emanada do cérebro aquecido pela centelha do talento.

Compreendemos a tortura, o tormento que vos espezinha, quando vibrante, febril, quereis fixar os sustos de nossa imaginação, as reminiscências do que viste e sentiste no momento em que vossa alma transbordando de poesia e de encanto, inundada de luz inebriara-se com as louçanias da natureza.

Quem vê a obra de arte, não calcula quanto sofrimento, quanto desgosto experimentou o seu autor, as dúvidas e as hesitações que teve, o desânimo que o fez abandoná-la, porque não atingia ao ideal que concebera.

Os grandes mestres assinavam seus quadros, escrevendo em seguida ao nome a palavra faciebat para demonstrar que exaustos tinham abandonado o trabalho por não lhes ser possível vencer a matéria.

Édouard Detaille, o grande pintor contemporâneo, estuda como um colegial, faz e recomeça seus estudos, desanima e se entusiasma, observa diariamente o modelo, escrupulosamente procura surpreender os caprichos da forma, e os cambiantes da cor, para num conjunto harmônico dar-nos as suas primorosas epopeias.

Ernest Meissonier, muitas vezes quis quebrar os seus pincéis porque, dizia ele, não davam a expressão que desejava imprimir em seus personagens, exclamando num transe doloroso e pungitivo: Não sei nada, não valho nada! Quereis mais exemplos, compulsa a história e tê-los-há à saciedade.

Trabalha portanto, trabalha muito, tens talento e atividade, e, embora já valhas muito, é preciso ir além, progredir. Não faremos crítica do que expuseste, que a façam os competentes. Só uma coisa almejamos, é ver o teu grande quadro concluído para mais uma vez render-te preito.

Saiba mais sobre o Museu Antonio Prreiras.

Pesquisa e edição: Alexandre Porto


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Publicado em 14/05/2025

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